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A legalização da Eutanásia - breves notas

22 June 2023

A legalização da Eutanásia - breves notas

Legalização da Eutanásia – Considerações sobre a Lei n.º 22/2023, de 25 de maio

 

A legalização da eutanásia e da morte medicamente assistida é um tema discutido em Portugal, desde 1995. Após o veto de dois decretos sobre o tema pelo Presidente da República, e dois decretos declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional, no passado dia 25 de maio de 2023, foi publicada a Lei n.º 22/2023, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível.

 

Definições legais e requisitos da morte medicamente assistida

 

                A morte medicamente assistida tem sustento no direito fundamental à autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade, previsto no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa e pode ocorrer por duas vias: suicídio medicamente assistido ou eutanásia, sendo o primeiro a ingestão de fármacos letais pelo próprio doente, sob supervisão médica e a segunda a administração de fármacos letais pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito, sendo que só é possível recorrer à segunda quando o primeiro for impossível, devido a incapacidade física do doente (art. 2.º e 3.º n.ºs 4 e 5).

A morte medicamente assistida não é punível quando “ocorre por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde” (art. 3.º n.º 1), pelo que são requisitos para a morte medicamente assistida os seguintes:

  1. Ser determinada por decisão da própria pessoa;
  2. Maioridade;
  3. Nacionalidade portuguesa ou residência legal em território nacional;
  4. Vontade atual, reiterada, séria, livre e esclarecida;
  5. Estar em situação de sofrimento de grande intensidade;
  6. Ter lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável.

Ora, a Lei prevê as definições de “lesão definitiva de gravidade extrema” e de “doença grave e incurável”. No entanto, em momento algum define o que se entende por “vontade atual e reiterada, séria, livre e esclarecida” não estabelecendo como é aferida esta vontade.

Tem especial relevância a definição de “sofrimento de grande intensidade”, da qual depende a legalidade da morte medicamente assistida. O Tribunal Constitucional pronunciou-se no sentido de ser um dever do legislador definir se o sofrimento físico, psicológico e espiritual seria cumulativo ou alternativo (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 5/2023, de 3 de fevereiro, publicado em Diário da República, 1.ª série, n.º 25, pág. 38). Contudo, a Lei atual nada prevê ou clarifica nesta matéria, não dando qualquer resposta à questão. Alguns países da Europa já se viram confrontados com esta situação, em termos concretos, tendo sido objeto de notícia em Portugal o caso de Aurelia Brouwers, de 29 anos, a quem, nos Países-Baixos, em janeiro de 2018, foi permitido recorrer à morte medicamente assistida, por sofrer, exclusivamente, de um grave transtorno psicológico.

É evidente a relação que se estabelece entre a saúde mental e a decisão de recorrer aos procedimentos de morte assistida, assim como é evidente a relação existente entre a vontade de recorrer àqueles procedimentos e a falta de cuidados paliativos adequados. Não pode permitir-se, para proteção do direito fundamental à autodeterminação, que a indeterminação da Lei viole o direito à vida, direito sobre o qual, em momento algum, se pronunciou o Tribunal Constitucional.

 

Procedimento legal

 

                O pedido de abertura do procedimento clínico para a morte medicamente assistida é efetuado por escrito. Ao doente devem ser garantidos o acesso a cuidados paliativos e o acompanhamento por parte de um especialista de psicologia clínica, salvo se o rejeitar expressamente (art. 4.º n.ºs 6 e 7).

                A concretização da morte medicamente assistida não pode ter lugar, sem que decorra um período de dois meses a contar da data da abertura do procedimento (art. 4.º n.º 5). É criticável a duração deste prazo, que pode mostrar-se excessivamente curto, atendendo à complexidade e necessidade de ponderação da decisão a tomar. Por outro lado, é previsível que aqueles que vierem a recorrer ao procedimento, pretendam evitar protelar uma situação de grave sofrimento.

                Não são admitidos os pedidos de doentes sujeitos a processo judicial para aplicação do regime do maior acompanhado, enquanto o mesmo se encontrar pendente, sendo o procedimento de morte medicamente assistida imediatamente suspenso quando o processo judicial for instaurado posteriormente à apresentação do pedido (art. 4.º n.º 4).

Uma vez admitido o pedido de abertura do procedimento, seguem-se as seguintes fases sucessivas, compostas por: parecer do médico orientador, parecer do médico especialista, parecer do especialista de psiquiatria (opcional) e parecer da Comissão de Verificação e Avaliação (doravante CVA). Se o parecer for favorável, é solicitado o parecer correspondente à fase seguinte, sendo que, em cada fase, o doente tem de reafirmar a sua vontade, mediante documento escrito, assinado e datado (arts. 5.º n.º 1, 6.º n.º 4, 7.º n.º 5, 8.º n.ºs 1 e 4). Se algum parecer não for favorável, o procedimento é cancelado e o doente apenas pode reiniciá-lo (arts. 5.º n.º3, 6.º n.º 3, 7.º n.º 2, 8.º n.º 3). Só se recorre ao parecer do médico especialista em psiquiatria, quando o médico orientador ou o médico especialista tenham dúvidas quanto à capacidade do doente para solicitar este tipo de procedimento, mediante vontade séria, livre e esclarecida, ou quando admitam que o doente seja portador de uma perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua capacidade de tomar decisões (art. 7.º n.º 1).

                Após a CVA se pronunciar em sentido favorável à realização do procedimento, o médico orientador, com a concordância do doente, procede à marcação do dia, hora, local e método a utilizar para a morte medicamente assistida, devendo estas informações ficar registadas por escrito, datado e assinado e consignado no Registo Clínico Especial (doravante RCE) (art. 9.º n.ºs 1 e 3).

                O doente pode optar pelos estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde e dos setores privado e social que estejam devidamente licenciados e autorizados para a prática de cuidados de saúde, podendo ainda optar por outro local, desde que o médico orientador se certifique que o mesmo possui as condições clínicas e o conforto necessários para o efeito (art. 13.º).

                No dia da realização do procedimento, o doente tem de manifestar a sua vontade perante o médico orientador e, pelo menos, uma testemunha (art. 10.º n.º 2) e , no momento da realização do procedimento, é obrigatória a presença do médico orientador e outro profissional de saúde (art. 10.º n.º 1). É permitida a presença de pessoas indicadas pelo doente, desde que o médico orientador entenda que estão reunidas as condições clínicas e o conforto adequados (arts. 10.º n.ºs 1 e 2 e 14.º).

Se, por algum motivo, o doente ficar inconsciente antes da data marcada para a realização do procedimento de morte medicamente assistida, o mesmo é interrompido (art. 9.º n.º 5).

                Ao longo do procedimento, todas as decisões do doente são pessoais e indelegáveis, todavia, caso o doente não saiba ou esteja fisicamente impossibilitado de escrever e assinar, o mesmo pode fazer-se substituir por uma pessoa da sua confiança, que não venha a obter qualquer benefício direto ou indireto com a morte do doente. Nestes casos, aplicar-se-ão as regras de reconhecimento de assinatura a rogo na presença de um profissional competente, a ser realizada na presença do médico orientador (art. 11.º).

                Ao doente é-lhe possível revogar o procedimento a todo o tempo (arts. 3.º n.º 7 e 12.º).

 

Direitos e os deveres dos profissionais de saúde

 

                Os profissionais de saúde têm de estar inscritos na Ordem dos Médicos ou na Ordem dos Enfermeiros e não podem vir a obter qualquer benefício direto ou indireto pela morte do doente. Os profissionais estão vinculados a deveres de informação, diálogo e manutenção das condições adequadas ao procedimento e sigilo profissional (arts 19.º e 20.º). Contudo, estes profissionais podem exercer objeção de consciência, isto é, recusar fazer parte de um procedimento de morte medicamente assistida, nos termos da lei.

               

Fiscalização e avaliação

 

A fiscalização compete à Inspeção-Geral das Atividades de Saúde (IGAS) que, em caso de incumprimento da Lei pode determinar, fundamentadamente, a suspensão ou o cancelamento de procedimento em curso bem como acompanhar presencialmente o procedimento de concretização da decisão do doente (arts. 23.º e 9.º n.º 4).

                A avaliação e aplicação da Lei é da responsabilidade da CVA, que é composta por 5 membros (dois juristas, um médico, um enfermeiro, e um especialista de bioética), nomeados pelo Conselho Superior de Magistratura, Conselho Superior do Ministério Público, Ordem dos Médicos, Ordem dos Enfermeiros e Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, respetivamente. O mandato é de cinco anos, renovável uma vez. A verificação ocorre após o recebimento do relatório final do processo, que está incluído no respetivo RCE, sendo certo que se for detetada alguma desconformidade, a CVA remete o relatório para o Ministério Público, e para as respetivas ordens profissionais dos envolvidos, para efeitos de eventual processo disciplinar.

                A CVA apresenta anualmente um relatório de avaliação da aplicação da presente lei à Assembleia da República, com informação estatística detalhada, sendo sempre garantido o anonimato e confidencialidade dos doentes. Nos primeiros dois anos de vigência da lei, este relatório tem de ser apresentado semestralmente.

 

Alterações ao Código Penal

 

                As condutas reguladas pela presente Lei são passíveis de consubstanciar um ilícito criminal, pelo que a presente Lei acrescenta aos artigos 134.º, 135.º e 139.º do Código Penal134.º, que penalizam, respetivamente, o homicídio a pedido da vítima, o incitamento ou ajuda ao suicídio e a propagando do suicídio um número, nos termos do qual, ”A conduta não é punível quando realizada no cumprimento das condições estabelecidas na Lei n.º 22/2023”.

 

Seguros de Saúde

 

                Sendo comum a exclusão do âmbito de proteção das apólices de seguro de saúde as situações em que a morte é provocada intencionalmente pelo tomador do seguro, o legislador teve o cuidado de regular os efeitos do procedimento nestes contratos. Tendo em conta os rigorosos requisitos da morte medicamente assistida, o legislador previu que a morte medicamente assistida não é fator de exclusão (art. 29.º n.º 1).

 

Considerações Finais

 

                A Lei está dependente de regulamentação, a aprovar pelo Governo, no prazo de 90 dias a contar da respetiva publicação (art. 31.º), sendo que só entrará em vigor 30 dias após a publicação da respetiva regulamentação (art. 34.º).

                Desta regulamentação, espera-se, talvez, a determinação da medida da definitividade e incurabilidade da doença e do sofrimento do doente, bem como a forma de aferir a capacidade de o doente formar e expressar uma vontade livre, atual, séria e esclarecida.

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